quinta-feira, 14 de junho de 2007

A Rua dos Cataventos

(Mário Quintana)

Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

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quarta-feira, 13 de junho de 2007

Memória

Carlos Drummond

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

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terça-feira, 12 de junho de 2007

A Pipoca

Rubem Alves

"(...)

A pipoca é um milho mirrado, sub-desenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!

(... )

Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão - sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: pum! - e ela aparece como uma outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.

(...)

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar. Meu amigo William, extraordinário professor-pesquisador da UNICAMP, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia as explicações científicas não valem. Por exemplo: em Minas ‘piruá’ é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: ‘Fiquei piruá!’ Mas acho que o poder metafórico dos piruás é muito maior. Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: ‘Quem preservar a sua vida perde-la-á.’ A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo."

Tô na panela há um ano... e não quero virar piruá.

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Ensaiando a Loucura - como controlar a eternidade.

(Não sei quem é o autor)

Invente um mundo onde a realidade já não flua mais. Imagine-se num autismo existencial e acredite nele. Lese seu senso de realidade. Cerceie as liberdades. Interrompa os processos.

Simplifique, reduza e resuma. Estanque toda dinâmica. Bloqueie os fluxos. Engesse os movimentos. Fixe e congele a existência. Aplaque as pulsões de eternidade.Não implique, não complique, não explique, não se aplique. Simplifique.

Não mergulhe. Permaneça boiando.

Se, para conformar, for preciso deformar, o faça. Informar ou transformar, jamais. Finja que a morte não existe. Negue seus medos. Subestime a decomposição de toda matéria.

Ignore a complexidade da verdade. Sintetize tudo em dogmas. Seja indiferente com as dúvidas. Despreze as indagações. Demonstre apatia e descaso diante das incertezas. Nunca reconheça sua ignorância. Jamais dialogue. Diante de divergências, simplifique: dê as costas ou um murro na mesa. Arrebente (no seu mundo, você tudo pode).


Acredite que pode manipular o outro. Fale muito e nunca ouça. Restrinja. Limite. Domine. Submeta. Subjugue

Não perca tempo com as realidades complexas como o sorriso de uma criança, o canto dos pássaros, o pôr do sol, a lágrima do ancião, a fome do semelhante. Não preste atenção ao mistério de sua própria respiração. Não dê lugar à perplexidade diante do imponderável. Foque sua atenção nas coisas simples como o dinheiro e o reconhecimento social. Acumule riquezas. Busque fama e elogios. Construa monumentos. Acredite no que se vê. Confie nas formas e aparências. Lute por resultados visíveis, cifras e estatísticas. A fé exigiria muito de você. Iluda-se com suas impressões de posteridade. Dê vazão às suas vaidades.

Ter hábitos previdentes em relação à saúde, também é muito complexo. Simplifique: coma tudo que tiver vontade e zombe dos que se preocupam com educação alimentar. Condicionamento físico também exige muita elaboração. Prefira a simplicidade de horas à frente da televisão. Aliás, entre de cabeça na tecnologia e não dê vazão à sensibilidade, algo tão complexo.

Evite relacionamentos pessoais, já que requerem tempo e paciência. Reduza tudo aos contatos funcionais e hierárquicos. Evite afetividades e comunhões. Invista nas estratégias de massificação, seja para se esconder na massa, seja para dominá-la. Resista na trincheira dos preconceitos. Superar discriminações demandaria custosas transformações pessoais. Não lide com o caos humano.

Acredite que você pode enjaular os monstros interiores seus e dos outros. Não confronte o caos resultante de sua mortalidade. Não leve em conta a tragédia interior do próximo.

Não ligue para a consciência. Minimize tudo ao cumprimento de algumas normas, mas não todas. Somente aquelas, em relação às quais, você consegue aparentar obediência. Amordace seus pensamentos ocultos. Seja indiferente aos seus sentimentos maus. Disfarce seus instintos. Crie personagens. Vista todas as fantasias. Com toda imaginação, invente seus próprios cenários. Fraude quem você é e acredite em quem você pensa ser. Oculte as intenções. Simule identidades. Não preste atenção a frustrações e angústias. Mantenha-se indiferente diante das inquietudes da alma. Camufle e disfarce.

Crie muitas leis. Confie nos rituais. Não busque diretamente a transcendência. Atenha-se à simplicidade dos ídolos e dos altares. Escolha o mais fácil e não o melhor. Institucionalize a espiritualidade.

Intoxicado pelas doses de ironia, se não puder evitar, vomite. Mas faça-o no seu travesseiro. Tenha ali seus pesadelos secretamente. Nunca demonstre suas náuseas em público. Nunca confesse suas fraquezas.

Institua seus diques de ironia junto à fonte.

Pronto! As águas jamais fluirão. Você controlou a eternidade.

Parabéns. Você é seu próprio deus neste seu mundo imaginário.

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segunda-feira, 11 de junho de 2007

Meus 38 Anos

Gosto de meus aniversários.

Não pela festa.

Não sou muito chegado à festas de aniversário pra mim.

Normalmente tento escapar. Não falo a respeito, finjo que esqueci, desconverso, marco compromissos “inadiáveis”, mas pelo menos um jantar com minha esposa, pais e irmãos acaba acontecendo.

O que gosto em meus aniversários é algo que comecei a fazer aos 28 anos.

É um segredinho que hoje, 10 anos depois da primeira vez, decidi tornar público.

No dia do meu aniversário eu separo um tempinho e faço uma lista com o nome das pessoas que de alguma maneira me ajudaram, me inspiraram, me deram força... ou seja, pessoas importantes pra mim... pessoas que desde que consigo me lembrar, de alguma forma me ajudaram a construir quem eu sou hoje. São amigos, parentes, colegas, professores, alunos, conhecidos e até gente que nem me conhece, mas que de algum modo tocou de forma significativa na minha vida.

Gente que com uma história, uma palavra, um gesto ou um olhar me ajudou a ser um pouco melhor...

Depois de fazer a lista, em segredo faço uma oração e agradeço a Deus por todos eles, por suas vidas, pelos ensinamentos e ainda peço a Deus que acompanhe cada um deles. Leio os nomes diversas vezes e me lembro de como cada um foi ou é importante para mim e peço a presença e a benção de Deus na vida deles.

Este ano resolvi fazer diferente.

Não pretendo divulgar esta a lista.

Pretendo pedir menos...

Por todo o resto de minha vida, quero me aproximar de quem ainda posso... chegar mais pertinho e, sem fazer barulho, quero ser para estas pessoas tudo aquilo que sempre pedi a Deus que lhes enviasse.

Este ano a oração vai ser bem diferente:“Senhor, me ajuda a ser uma benção na vida dessas pessoas a quem eu tanto devo. Em nome de Jesus, Amém”

São Paulo, 12 de Maio de 2007.